Podemos chamar Deus de “mãe”? 

Que Deus é chamado de “Pai” requer uma discussão mais completa. No Antigo Testamento, a paternidade de Deus é básica para o tema principal de Israel como o “filho” eleito de Deus. A paternidade de Deus, portanto, denota Deus como o Deus da graça e do amor imerecido. No Novo Testamento, a designação de Deus como “Pai” é bastante comum e este é o nome pelo qual Jesus, o Filho de Deus, se dirige a Deus. 

As designações “Pai” e “Filho” denotam diretamente a relação primária que existe entre Deus e Jesus. Por essa razão, já no Novo Testamento – e mais plenamente expresso na tradição conciliar da igreja – as designações “Pai” e “Filho” são entendidas como nomes revelados que se referem a relações eternas dentro da Divindade. O Pai é Deus e o Filho é Deus, dentro da Divindade. Embora não seja comum, a palavra “pai” ocorre como uma referência a Deus no Antigo Testamento. Veja exemplos: Dt 32.6; Is 63.16; 64.7; Jr 3.4,19; Ml 1.6; 2.10; 2Sm 7.14; 1Cr 17.13; 22.10; 28.6; Sl 68.6; 89.27.

Deus é o “pai” de Israel em virtude de sua eleição de Israel para ser seu povo. Referindo-se à eleição de Israel, Moisés, por exemplo, diz: “Não é ele teu pai, que te criou, que te fez e te estabeleceu?” (Dt 32.6; veja Is. 64.8). A narrativa da eleição de Abraão para ser o progenitor do povo escolhido e o “pai de muitas nações” é especialmente importante para este tema (Gn 17.1-9). No meio de povos que tinham inúmeras divindades femininas, Deus chama Abrão, cujo nome significa “pai exaltado” ou “o pai é exaltado”. É a Abrão que Deus escolhe fazer sua promessa de redenção das nações. Ele, portanto, muda o nome de Abrão para Abraão, “pai de muitas nações”. Em todo o Antigo Testamento, Deus é o Deus de Abraão, de modo que a paternidade de Deus de Israel está implícita nas histórias patriarcais da história determinante de Israel, embora a nomeação explícita de Deus como “pai” de Israel seja relativamente pouco frequente. 

Visto que Deus é o “pai” de Israel por meio de sua eleição de Israel para ser seu povo, Israel é “filho” de Deus por ser adotado por Deus. Quando Deus enviou Moisés a Faraó, ele disse a Moisés que falasse a Faraó as seguintes palavras: “Já lhe disse que deixe o meu filho sair a fim de me adorar. Mas você não deixou, e por isso eu vou matar o seu filho mais velho.” (Êxodo 4.23). Este texto da filiação de Israel é a base para as palavras posteriores do profeta Oséias que encontram cumprimento em Cristo: “Quando Israel era criança, eu já o amava e chamei o meu filho, que estava na terra do Egito” (Os 11.1, veja Mt 2.15). De uma maneira relacionada, mas diferente, Deus é o “pai” dos reis de Israel, que são então chamados de “filhos” de Deus. Isso é especialmente verdadeiro para o rei Davi, que é um tipo messiânico do Messias que viria. Típico deste tema é 2Sm 7.14–15: “Eu serei o pai dele, e ele será meu filho. Quando ele errar, eu o castigarei como um pai castiga seu filho. Porém não retirarei dele o meu amor, como fiz com Saul, para que você pudesse ser rei” (veja também Sl 2.7; 89.19–27; 1 Cr 17.13; 22.10; 28.6). A ideia de que Deus é o “pai” de seu povo por meio de adoção ocorre também no Novo Testamento. Como o verdadeiro filho de Abraão, ou seja, o novo Israel, Jesus é designado por Deus para ser seu Filho: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo” (Mt 3.17 e paralelos). Esta afirmação é repetida na transfiguração de Jesus (Mt 17.5). Correspondendo a essa nomeação de Jesus como “Filho”, Jesus se dirige a Deus como seu “Pai” (Mt 11.27; ocorre também com frequência em João), e ele instrui seus discípulos que eles também devem se dirigir a Deus como seu “Pai” (Mt 6.9; Lc 11.2). De fato, que os cristãos são “filhos” de Deus por meio de adoção é central para a teologia batismal do Novo Testamento: “Mas, quando chegou o tempo certo, Deus enviou o seu próprio Filho, que veio como filho de mãe humana e viveu debaixo da lei para libertar os que estavam debaixo da lei, a fim de que nós pudéssemos nos tornar filhos de Deus. E, para mostrar que vocês são seus filhos, Deus enviou o Espírito do seu Filho ao nosso coração, o Espírito que exclama: “Pai, meu Pai.” (Gl 4.4–6; veja Rm 8.12–17). O apóstolo Paulo é igualmente explícito quanto à filiação adotiva dos cristãos em Ef 1.3–6: “Agradeçamos ao Deus e Pai do nosso Senhor Jesus Cristo, pois ele nos tem abençoado por estarmos unidos com Cristo, dando-nos todos os dons espirituais do mundo celestial. Antes da criação do mundo, Deus já nos havia escolhido para sermos dele por meio da nossa união com Cristo, a fim de pertencermos somente a Deus e nos apresentarmos diante dele sem culpa. Por causa do seu amor por nós, Deus já havia resolvido que nos tornaria seus filhos, por meio de Jesus Cristo, pois este era o seu prazer e a sua vontade. Portanto, louvemos a Deus pela sua gloriosa graça, que ele nos deu gratuitamente por meio do seu querido Filho.” (veja também Jo 1.12; 1Pe 1.3). 

Os batizados no Filho de Deus se tornam “filhos” de Deus e têm o direito de chamá-lo de “Pai”. No entanto, como o Novo Testamento presume, a paternidade adotiva de Deus por nós é a expressão do amor eterno e paterno de Deus por seu Filho eterno. Deus é o Pai do Filho, e o Filho é o Filho do Pai. Este status único que Jesus tem como “Filho de Deus” é indicado no Evangelho de João onde Jesus é dito ser o único Filho de Deus (Jo 1.14, 18; 3.16). Da mesma forma, o endereço filial de Jesus a Deus como seu “Pai” indica mais do que a filiação adotiva que os cristãos têm com Deus. Jesus é o Filho que o Pai “enviou” (João 7.16). Ele é o Filho em quem há vida eterna como há vida eterna no Pai (Jo 5.26). 16 Ele é um com o Pai (João 10.30). Ele está no Pai e o Pai está nele (João 10.38). Ele compartilhou a glória com o Pai antes que o mundo fosse feito (João 17.5). É evidente a partir de tais passagens que “Pai” e “Filho” não são, por assim dizer, simplesmente metáforas como Rei, Juiz, Pastor e Marido. Essas metáforas surgem da história de Israel, cujo Rei, Juiz, Pastor e Marido é Deus. A paternidade de Deus e a filiação de Deus, no entanto, estão enraizadas, em última análise, não em sua eleição de Israel, mas em seu ser divino. “Pai” e “Filho”, portanto, designam a primeira e a segunda pessoas da Trindade em relação uma à outra. Em Deus a paternidade não é extrínseca ao ser de Deus. Nele, “Pai” não é um título; designa e especifica a realidade pessoal/hipostática de Deus como Pai que eternamente gera seu Filho. Da mesma forma, em Deus a filiação não é extrínseca ao seu ser. Nele, “Filho” não é um título; designa e especifica sua realidade pessoal/hipostática como Filho que é eternamente gerado do Pai. Desde a crise ariana do século IV, a igreja tem insistido que os nomes “Pai” e “Filho” correspondem perfeita e verdadeiramente à realidade da primeira e segunda pessoas da Trindade. Deus não é meramente chamado de “Pai” e “Filho”; Deus é Pai e Deus é Filho. A teologia trinitária das Escrituras confessada nos credos dos concílios ecumênicos exige que Deus seja chamado de “Pai” e “Filho”.

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O texto acima é um trecho traduzido do seguinte documento:

Commission on Theology and Church Relations of The Lutheran Church—Missouri Synod. “BIBLICAL REVELATION and INCLUSIVE LANGUAGE”. Fevereiro de 1998. p. 3-15.

Veja versão completa (em inglês): Biblical Revelation and Inclusive Language 1998.pdf